Era uma vez um cachorro que tinha um menino. “Coooomo assim? Um
cachorro que tinha um menino, ou um menino que tinha um cachorro?”. É isso
mesmo que você ouviu: um cachorro tinha um menino. Era um cachorro imenso,
indócil, muito abusado. Latia muito, comia demais, era desobediente, queria
estar em todo lugar da casa, não se aquietava nunca. O menino era pequeno
diante dele, e vivia por ele, era dominado pelo cachorro. Era seu servo.
Todos os dias – todos os dias – o menino acordava 30 min mais
cedo para descer com o cachorro. Só depois tomava seu café e ia para a escola.
Quando o menino chegava em casa, o cachorro o recebia
alegremente na porta do elevador, batendo as patas em sua barriga até derrubar
seus cadernos, ansioso por um afago. O menino atendia ao cachorro antes mesmo
de almoçar.
Enquanto fazia suas tarefas, o cachorro ficava do lado, lambendo
as pernas do menino, chamando sua atenção. Ele se confundia, não sabendo se
atendia primeiro ao cachorro ou às tarefas.
Após fazer a lição de casa, o menino descia para a quadra para
jogar com seus amigos do prédio, mas o cachorro ia junto, correndo pela quadra,
atrapalhando o futebol.
À noite ainda era pior, pois o cão não dormia, pulando em cima
do garoto enquanto ele assistia a seu programa de esporte favorito.
Sua mãe reclamava que o garoto não lhe dava atenção, não
conversava com ela. Sua irmã caçula chorava porque o menino não brincava com
ela. Seu pai brigava com ele, ameaçando vender ou doar o cão.
O menino também estava cansado, muito cansado. O menino não
dormia sem o cão; não comia sem o cão; não brincava sem o cão; não conversava
sem o cão. O menino não vivia. O cão o dominava. O cão era seu dono.
De tanta raiva, o garoto passou a imaginar que a única solução
seria se livrar do cão. Pensou que haveria dias em que sentiria saudades, mas a
liberdade de não ter mais um cachorro para lhe dominar as horas o atraía, pois
ele não achava meios de evitar o animal. Não havia como disciplinar o bicho,
nem lhe dedicar apenas o tempo suficiente. Ele sempre queria mais, ele
reivindicava todas as horas da criança. O menino bolou um ‘plano exclusão’,
chegando a sentir certo prazer em imaginar o cão sozinho, abandonado em uma
noite escura, bem longe de casa, em uma cidade vizinha, para que não achasse o
caminho de volta. Pensou que, só aí, haveria descanso.
Sentou-se no sofá e o cachorro, claro, veio atrás. Naquele
momento, já resguardado pela possibilidade imaginária de se livrar do animal, o
menino olhou nos olhos marrons do cão, que lhe miravam com ternura. O bicho
chegou perto, abaixou as orelhas, sentou-se aos pés do menino, lambeu-lhe as
mãos. Menino e cachorro cruzaram os olhares. Foi então que o menino viu tudo. E
da profundidade dos olhos do cachorro veio a compreensão. Naquele momento
Gaspar compreendeu o que Rex estava fazendo por ele, o que a presença ostensiva
do cachorro significava para ele. Percebeu então, pela primeira vez, que a
solução não estava no cachorro, e sim nele mesmo. Então, Gaspar fez um gesto de
carinho na cabeça de Rex.
Wanda Lúcia Ramos da Silva – Turma Practitioner C, 2014 – SBPNL.
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